Atualmente há um febre de questionamento sobre o modo de vida, o modo de encarar a vida e o trabalho, sobre rotas e rumos, sobre objetivos de vida; quais seriam válidos e quais não deveriam ser. Isso é altamente positivo, porque a placidez bovina com que essas questões foram encaradas no século passado de fato indicavam que todos poderiam ser conduzidos silenciosamente para o matadouro, e pouco se dariam conta disso, porque estavam ocupados demais com outras coisas, “mais práticas”. Hoje, seres pensantes não se permitem mais ignorar o questão central que é poder responder com relativa clareza “o que você quer da sua vida”. Ainda que muitos talvez respondam que o único objetivo da vida seja ter 10 Ferraris, 3 castelos e um bilhão de dólares, tanto que hoje existe uma “cultura” da ostentação que afirma, às claras, exatamente o direito à essa escolha pessoal expressa pela frase “fique rico ou morra tentando”, de modo geral a escolha deliberada de modelo de vida é uma questão essencial na cultura do século 21, cada vez mais expressa numa divisão entre dois modos que obviamente aparecem aqui numa simplificação, indicando a tendência:
Orientação pelo objetivo
“A gente faz o que tem de ser feito para o objetivo. quando sobrar algum tempo, a gente faz algo que nos interessa. Como o que nos orienta é o objetivo, subordinamos à vida aos resultados para os objetivos. Ou seja, a vida não é legal. A gente se mata para obter uns 10% de coisas legais na vida. É assim mesmo, nunca vai ser diferente, então sejamos 10% felizes e chamemos isso de vida feliz.
Aqui, fazemos o que tem de ser feito para os resultados, e se isso significa trabalhar 20 horas por dia no que não amamos, que seja. Porque o lifestyle é secundário, produzido e decorrente do tempo que sobra depois de correr atrás de todos os resultados.
O problema: se o seu objetivo mudar, talvez tudo perca o sentido.
Essa é, em essência, a visão de mundo dos chamados “integrados”, por Umberto Eco: aqueles que sentem que “está tudo relativamente ok”, e se você acha que não está, não é necessariamente “um de nós”. Nós, no caso, os integrados, bem-sucedidos, os que estão “ok”.”
E se você não é um dos integrados, pela visão do Umberto Eco, você é, em alguma medida, um “apocalíptico”. Não no sentido de querer que o mundo “acabe”, literalmente. Mas no sentido de querer que ele mude – e por este viés, sim, que “acabe” o velho mundo e comece um novo, que você entenda como melhor. Se você é um apocalíptico, talvez tenha uma visão de vida do segundo tipo:
Orientação pelo Lifestyle
A gente faz o que ama e nos faz feliz. Há coisas que apesar de não amarmos nem nos fazerem felizes, são indispensáveis, então fazemos – usando o mínimo tempo possível nelas. Como o que nos orienta é o estilo de vida, fazemos aquilo que não comprometa o estilo de vida – e perseguimos resultados na medida que eles sejam necessários para manter o estilo de vida; nada mais.
Ou seja, a vida é legal, e vivida como nos faz sentido. Se a gente vive uns 80% dentro daquilo que ama, e faz uns 20% do que é indispensável para voltar, logo, para os 80% que interessam – por ser a maior parte do que vivemos, somos felizes. Aqui, fazemos o que se alinha com o lifestyle, e se isso determina que teremos menos dinheiro, que seja. O Resultado é secundário, produzido e decorrente do que se encaixa num estilo de vida.
Aqui, só faz sentido obter recursos com o que amamos, senão mais da metade da vida não combinará com o lifestyle.
O Problema: nem sempre se consegue resultados suficientes sequer para manter o lifestyle.
Não existe solução fácil para os problemas – nem o da visão integrada, nem da apocalíptica. Há pessoas que conseguem viver bem – que é o que nos interessa no fim das contas; em qualquer um desses modelos.
Complexidade Crescente
A questão nova, talvez, seja que a crescente complexidade do modo de vida globalizado, assim como a pressão cada dia maior porque os recursos tornam-se escassos neste modelo social com 7.5 bilhões de habitantes no mundo tem empurrado ambas as visões de mundo para seus limites. Para que se possa viver bem como integrado, a pessoa tem de “desistir” cada vez mais completamente de qualquer outra coisa que não seja perseguir seu objetivo e seus resultados. Então ela tem de “terceirizar” filhos, a família, trabalhar no fim de semana, trabalhar 20 horas por dia, e para dar conta disso tudo, viver à base de antidepressivos e estimulantes (psicológicos, químicos ou ambos) senão, não chega aos resultados. O ponto é que muitas vezes essa escolha termina na emergência do hospital, no infarto, no derrame cerebral; em famílias de fachada, gente que mal convive, embora casados há dez anos; e pais que mal conhecem os filhos, não sabem quem eles são, embora saibam exatamente, até os centavos, quanto eles custam na planilha do mês.
Do outro lado, os apocalípticos, empurrados pelas mesmas pressões, por vezes aceitam viver com poucos recursos, ganhando quase nada, e adaptando suas necessidades mais básicas a um modelo econômico que acaba determinado pela falta, escassez e a alta necessidade de adaptabilidade e aceitação de limitações. Exemplo: dá pra viajar? Não, esse ano não. Ano que vem também não? Bom, paciência, vamos vivendo e um dia quem sabe. O ponto é que muitas vezes a escassez começa a determinar o lifestyle – colocando em risco exatamente o que deveria ser a “baliza” da vida; e, a manter a situação, obviamente a escolha do lifestyle vai tornar-se uma falácia, uma mentira mesmo, porque de fato nada estará realmente “sendo escolhido” – a vida vai ser aquilo que dá pra ser, e nada mais, não tem mais escolha alguma nisso.
Novos Harmônicos
Há no horizonte um grupo que parece vir criando uma fusão possível entre as duas visões. Eu chamaria essa grupo de “os novos harmônicos”.
Diferente dos “integrados”, os novos harmônicos não sentem simplesmente que tudo estava ok. Eles talvez estivessem, originalmente, mais para apocalípticos do que para integrados, de fato. O interessante é que, diferente da maioria dos apocalípticos, os novos harmônicos – ao menos neste ponto da história, pela metade de 2015 – parecem ter encontrado um equilíbrio diferente. Um ponto médio entre funcionalidade e transformação; conseguindo realizar profissionalmente uma atividade que gera sentido e prazer; e portanto realização; ao mesmo tempo em que são capazes de produzir resultados para viverem de modo que os satisfaz. Se coloco o aspecto da circunstância, ainda a ser confirmado o sucesso do “modelo” (na verdade, muitos modelos e muito personalizados) é porque o fenômeno é recente, e dois fatores despertam atenção.
Primeiro, muitos dos novos harmônicos tem como atividade principal, justamente, orientar, de um modo ou de outro, apocalípticos e ex-integrados na sua busca por um novo modelo de vida – seja escrevendo, através de terapia, coaching, consultoria ou outras formas. Naturalmente, há um limite de “saturação” para esta possibilidade. Pessoalmente, creio que esse limite está para bater às portas, visto que basicamente cada “novo harmônico”, assim que se estabiliza minimamente, parece disposto a promover sua receita como uma forma de geração de renda, através de um curso, workshop ou livro. Embora as intenções possam ser as melhores; é fácil imaginar que uma sociedade composta apenas de professores logo ficará sem alunos dispostos a pagar pelo aprendizado. Quando o novo harmônico busca uma atividade não relacionada diretamente à promoção de sua filosofia de vida, como a produção de alimentos orgânicos ou a pesquisa por fontes alternativas de energia, por exemplo, aí sim creio que temos um mundo aberto de possibilidades que pode durar e sustentar-se por muitos e muitos anos.
Segundo: porque os novos harmônicos, em sua maioria, são ainda muito jovens e vindos das camadas mais privilegiadas da população e essas duas características servem como “amortecimento”. Por serem muito jovens, fica difícil prever se o “modelo” possa ser sustentado para além do momento da paternidade/maternidade, da constituição da família, aquele ponto de mutação na vida no qual as despesas e necessidades crescem e mudam descontroladamente. Pela posição social privilegiada, fica bastante claro que, neste momento, para chegar a algum lugar parecido com essa “nova harmonia” é necessário começar de um ponto diferente (e um tanto distante, ao menos na realidade brasileira); da base da pirâmide – porque lutando pelo almoço não se contempla a possibilidade real dessa liberdade de escolha.
Essa complexidade toda que vivemos hoje foi muito bem prevista, por exemplo, por Terence Mckeena no fim dos anos 90. Ele tinha plena certeza do colapso das instituições já naquela época (antes do 11 de setembro, inclusive) exatamente porque entendia que a complexidade das relações econômicas, políticas e interpessoais chegava perto de um ponto de diluição das instituições, normas e regras vigentes até o século vinte. Tudo aquilo que “segurava”o mundo no lugar estava destinado a desmanchar sob o peso da complexidade dos primeiros anos do século 21. E temos então, no século atual um pensador como Zygmunt Bauman, que aponta exatamente para o fato de que todas as certezas e fundamentos dos séculos anteriores simplesmente “derreteram”, não existem mais. Tudo tornou-se líquido, flexível, mutável, adaptável. Exatamente como previu Mckeena, confirmou Bauman: derreteu.
Essa complexidade foi um dos aspectos menos divulgados da “aldeia global” prevista por Marshall Mcluhan. Já nos anos 60, ele dizia que o mundo todo se tornaria uma única aldeia, com uma cultura básica muito mais semelhante, com valores mais parecidos e que talvez isso trouxesse mais entendimento. Isso pela visão mais otimista. Mcluhan nunca deixou de apontar para o risco do oposto: dos choques e divisões que potencialmente poderiam emergir, justamente por “juntar’ numa única aldeia global culturas tão diversas. O fato é que justamente essa diversidade, que é altamente positiva e cumpre um importante papel evolutivo; é o fator que coloca em cena um nível de complexidade (e potencial conflito) jamais visto antes.
Porque, no fundo, o ser humano atualiza-se muito lentamente. Muito mais lentamente que qualquer software, rede, mercado ou tecnologia. A idéia de “aldeia global” pode ter mesmo um apelo lindo. Mas os seres humanos ainda consideram que sua aldeia é apenas o que está em volta deles, e que sua família é composta apenas daqueles que tem o mesmo sangue nas veias; ou, no mínimo, tenha sido criado de modo parecido e respeite as mesmas “normas gerais”. Para confirmar isso, basta reparar que; mesmo quando se trata de parentes de sangue, quando as discordâncias chegam a pontos críticos, não raro um descendente é simplesmente “deserdado”; renegado exatamente por aqueles que o criaram. Porque não reconhecem nele a continuidade da família e da cultura da aldeia.
Este talvez seja o cerne da questão: o ser humano precisará se adaptar mais velozmente, aceitar que suas velhas visões não tem mais validade. Engolir que aquilo que ele aprendeu há 20 anos não faz mais sentido querer ensinar para os filhos. Abraçar o fato de que cor, religião ou local de nascimento terão de ser abandonados como baliza de qualquer coisa, sob o risco de simplesmente afundar o barco global. A aldeia global talvez seja, de fato, o único caminho viável para equilibrar populações, necessidades, produção e consumo, previdência e o envelhecimento do mundo.
Mas para usufruir do lado positivo da aldeia global, será preciso abraçar as diferenças e a diversidade como riqueza, e eliminar o preconceito e as divisões de um modo realmente radical.
O que, para voltar à metáfora da atualização do software; parece muito mais um reset. Parece que o update necessário é muito radical para manter o mesmo “sistema operacional”.
A sensação é que teremos de zerar o disco rígido e mudar de plataforma. Operação de altíssimo risco, de fato.
Até porque, fica a pergunta:
- Será que alguém lembrou de fazer o backup?
Artigo Publicado originalmente no The São Paulo Times http://saopaulotimes.r7.com/sp/18206/